A Polícia Civil de São Paulo realizou no último sábado (3) uma prisão por tráfico de drogas que se tornou o principal assunto na cúpula da segurança paulista. O motivo de tanto furor não foi pela quantidade de entorpecentes ou de pessoas envolvidas, mas por ter sido o primeiro flagrante por videoconferência registrado em todo o Estado.
A experiência, considerada exitosa, ocorreu no litoral norte. Duas pessoas foram presas com entorpecentes por policiais militares de Ubatuba e levadas para uma delegacia do mesmo município.
A diferença dessa prisão se deu a partir daí. Tanto os policiais quanto os suspeitos contaram suas versões para uma delegada que estava a cerca de 50 km de distância, na vizinha Caraguatatuba.
Todos se comunicaram diante de grandes monitores (com equipamentos de áudio e som) instalados em salas preparadas especialmente para a realização dessas audiências por videoconferência.
Interrogatórios e depoimentos foram gravados em vídeo. A impressão do auto de prisão em flagrante ocorreu, porém, em Ubatuba, como se a delegada Junia Cristina Macedo Veiga e sua equipe tivessem se deslocado até lá.
O projeto, idealizado pelos policiais do litoral norte, deve ser levado a outras áreas. O governo paulista deu aval à polícia para sua implantação em diferentes regiões do Estado onde o delegado de uma cidade de médio porte acaba responsável também pelas prisões em flagrante nos municípios vizinhos.
PROBLEMA CRÔNICO
Pela legislação brasileira, excetuando-se os crimes militares, somente o delegado de polícia pode autuar uma pessoa em flagrante.
Ele pode até mandar soltar um suspeito, mesmo que a PM tenha dado voz de prisão. Isso ocorre algumas vezes nos crimes de tráfico (que é inafiançável) e porte de drogas (no qual não há prisão).
A criação de flagrantes remotos no litoral norte é fruto de dois problemas quase insolúveis para a polícia.
A grande distância de uma localidade e outra —o litoral norte tem 200 km de extensão linear— e um deficit de efetivo que atinge toda a Polícia Civil do Estado.
Segundo dados do próprio governo, no final de 2015 havia 2.903 delegados de todas as carreiras e carência de ao menos 560 profissionais.
Esse deficit ainda é considerado pelos delegados paulistas como subdimensionado, já que não considera o crescimento populacional.
“Nós temos que ter criatividade. Estamos passando por uma crise e ninguém consegue repor o efetivo na proporção que precisa. Então, precisamos criar meios para que a gente possa atender a demanda”, disse o delegado Célio José da Silva, responsável pelas cidades do litoral norte de São Paulo.
A OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) e a Associação Paulista do Ministério Público, porém, fazem ressalvas à medida, que, segundo as entidades, pode prejudicar o suspeito.
De acordo com o delegado seccional de São Sebastião, Múcio Mattos Monteiro de Alvarenga, idealizador do projeto, uma das vantagens da central remota de flagrantes é não retirar o policiamento ostensivo de suas cidades —os PMs assim não precisam se deslocar a outra localidade para escoltar os presos.
Para evitar contestações judiciais, essa central da Polícia Civil possui monitoramento por câmeras o tempo todo. Só a sala para reunião do suspeito com seus advogados não tem filmagem nem gravação do som ambiente.
“As pessoas [presos e advogados] poderão questionar as formalidades [desse tipo de flagrante] quando quiserem questionar o mérito. Mas estamos seguindo todas as normas de videoconferências”, disse o delegado.
CAUTELA
As prisões em flagrante por videoconferência podem reduzir o tempo de espera nas delegacias, mas o modelo precisa ser visto com ressalvas, segundo uma delegada, um procurador e um advogado ouvidos pela reportagem.
O procurador Márcio Sérgio Christino, vice-presidente da Associação Paulista do Ministério Público, pede cautela nessa implementação.
O principal problema, segundo ele, é não ser obrigatória a participação de defensores dos suspeitos durante os interrogatórios, como ocorrem nas teleconferências realizadas pela Justiça.
“Lá [Justiça], os advogados acompanham nas duas pontas”, disse o procurador.
Segundo ele, a ausência do defensor e também do próprio delegado (de maneira física) aumenta as chances de abusos por parte de policiais no momento do flagrante.
“Quem garante que o policial não diga para o suspeito: ‘Olha bem o que você vai falar, porque te pego depois’.”
Para o presidente da Comissão de Segurança Pública da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Arles Gonçalves Júnior, do ponto de vista da defesa, a videoconferência é prejudicial ao suspeito.
“Uma coisa é ver a pessoa pelo vídeo e, outra coisa, pessoalmente. No interrogatório [presencial], você percebe outras coisas, além da fala da pessoa”, afirmou ele.
Por outro lado, o advogado afirma que a polícia tem atualmente um déficit de cerca de 14 mil homens e não são raros os casos de flagrantes que demoram até oito horas para começar apenas à espera da chegada do delegado.
“Do ponto de vista da segurança pública, é uma alternativa possível. É uma tentativa de a polícia, com um efetivo extremamente reduzido, atender melhor a população”, disse. “Deve acelerar o atendimento. Se isso é bom ou ruim, nós vamos ter que ver”, completou o advogado.
Para a presidente da Associação dos Delegados de São Paulo, Marilda Pansonato Pinheiro, a videoconferência é uma realidade em razão da “carência de policiais civis em todo Estado”.
“Isso evita deslocamentos, especialmente de delegados que, em alguns casos, atendem de três a quatro cidades, o que inviabiliza sua presença com a agilidade necessária”, afirmou a presidente.
Ainda segundo a policial, recentemente a associação levou até o secretário de Segurança do Estado, Mágino Alves Barbosa Filho, um pedido de urgência para a nomeação de todos os aprovados no último concurso público.
“O quadro é grave e exige atenção já que as investigações ficam prejudicadas. A Polícia Civil, apesar disso, tem feito excelente trabalho, a fim de não penalizar ainda mais a sociedade que já amarga a violência urbana.”
O Tribunal de Justiça de São Paulo foi procurado para comentar o assunto, mas ninguém foi indicado para falar sobre esses flagrantes.
A Defensoria Pública, por sua vez, disse que ainda tem poucas informações sobre a implantação do projeto e, por isso, não iria se manifestar.
Fonte: Folha de São Paulo por Jonas Leite